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Archive for the ‘rio Negro-AM’ Category

OS TARUMÃ VIVEM

por
José Ribamar Bessa Freire
29/10/2011

O Tarumã é um povo muito importante na história de Manaus e do Amazonas. Marcou nossa identidade regional e nossos lugares de memória. Mas nós, brasileiros, especialmente os amazonenses, acreditamos piamente que esse povo não existe mais e que seu idioma é uma língua morta. Tal crença foi reforçada até mesmo por quem digita essas mal traçadas.

Acontece que a documentação histórica até então conhecida assegurava que os Tarumã foram varridos de seu território na região do baixo Rio Negro e exterminados, num processo iniciado com a construção do Forte de São José da Barra do Rio Negro, em 1669, que deu origem à cidade de Manaus. Não sobrou um Tarumã para contar a história.

Ledo engano. Sobrou sim. Os Tarumã continuam vivinhos da silva, em pleno século XXI. Eles vivem atualmente em uma comunidade wapishana na ex-Guiana Inglesa, perto de Lethem, uma cidadezinha às margens do rio Tacutu que faz fronteira com o Brasil e fica em frente à cidade de Bonfim, em Roraima, para onde migraram fugindo da violência dos portugueses.

A língua Tarumã, considerada como extinta, na realidade continua sendo falada, conforme descobriu a lingüista Eithne Carlin, da Universidade de Leiden, na Holanda. Ela pesquisa as línguas ameríndias faladas na ex-Guiana Inglesa, no Suriname e na Guiana Francesa e localizou um grupo de falantes do Tarumã. Agora está documentando a língua deles. Embora na área de fronteira os grupos demograficamente maiores sejam os Wapishana e Waiwai, muitos topônimos na bacia do rio Rupunini são originalmente da língua Tarumã, o que pode indicar a importância deles na região.

Quem me passou essa informação sobre o trabalho de Eithne Carlin foi outro linguista holandês, Willem Adelaar, da mesma Universidade de Leiden, durante o Encontro Internacional de Arqueologia e Lingüística histórica, realizado em Brasília, no auditório do Memorial Darcy Ribeiro, na semana de 24 a 28 de outubro – uma iniciativa do Laboratório de Línguas Indígenas da UnB e da PUC do Peru.

 O encontro, coordenado pelos lingüistas Aryon Rodrigues e Ana Suely Cabral, reuniu os bambambãs e especialistas, entre os quais arqueólogos, linguistas, antropólogos, historiadores, museólogos, de várias partes do mundo. Trata-se de um momento singular, que nos permite recuperar informações como essa sobre os Tarumã. Ao contrário de alguns eventos acadêmicos, onde cada um fala o que tem pra falar e ninguém discute o que foi dito, nesse evento cada palestra, conferencia ou comunicação era seguida de questionamentos, observações e indagações.

Talvez no momento em que se comemora mais um aniversário de Manaus seja oportuno relembrar alguns dados que já foram registrados aqui na coluna. Na ocasião, reconstruímos parte da história do povo Tarumã, usando pesquisas do lingüista tcheco – Cestmir Loukota, de um viajante alemão – Robert Schomburgk, de um historiador inglês – John Hemming, e de um padre português – Serafim Leite, que em 1905, ainda jovem, trabalhou como seringueiro no rio Negro.

No século XVII, os Tarumã foram misturados com outros índios pelos jesuítas que abriram caminho aos missionários carmelitas, com a criação de uma ‘aldeia de repartição’. De lá, muitos deles foram repartidos para prestar trabalho compulsório aos colonos, aos missionários e à Coroa Portuguesa em Belém. Os Tarumã que recusaram foram massacrados na “guerra justa” promovida por Pedro da Costa Favela, entre 1665 e 1669. Muitos deles, escravizados, trabalharam na construção do Forte de São José do Rio Negro, em 1669, que deu origem à cidade de Manaus.

Quando o padre jesuíta Samuel Fritz passou pelo rio Negro, por volta de 1690, encontrou o chefe Tarumã, conhecido como Karabaina, com o corpo coberto de cicatrizes, marcas das constantes violências cometidas pelos portugueses, conforme nos conta John Hemming, autor do livro “Red Gold”, o ouro vermelho, representado – no dizer do padre Vieira – pelo sangue derramado dos índios escravizados.

Começou, então, o longo êxodo dos sobreviventes. A última notícia que temos dos que permaneceram na proximidade de Manaus foi dada pelo Comandante Militar da Comarca do Alto Amazonas, Lourenço da Silva Amazonas (1803-1864), que relata como, em 1808, centenas de índios foram levados, ‘acorrentados, como se fossem condenados’, para o trabalho na fazenda do Tarumã, de propriedade do governador José Joaquim Vitório da Costa. Nessas alturas, os Tarumã jã haviam sido espoliados e expulsos de seus territórios.

Em sua fuga, subindo o rio Negro, os Tarumã foram invadindo territórios de povos que falavam línguas da família Aruak, com quem mantiveram diferentes tipos de relação, quase sempre conflitivas, mas às vezes amistosas. Na sua longa marcha, eles foram parar no extremo norte, na Guiana, em pleno território Karib, onde se fixaram e fizeram alianças com povos dessa família lingüística, o que favoreceu a realização sistemática de casamentos interétnicos.

Por volta de 1837, o alemão Robert Schomburgk a serviço dos ingleses, encontra ao longo dos rios Essequibo e Cuyuwini cerca de 150 índios Tarumã que haviam chegado à Guiana Inglesa, depois de haverem percorrido mais de 2.000 km pelo rio e pela floresta. Foi lá que o antropólogo William C. Farabee, da Universidade de Harvard, os encontrou, em 1916, misturados com os Wai-Wai, de filiação Karib. Depois disso, acreditávamos que estavam extintos, o que agora sabemos não ser verdade, graças ao trabalho da linguista E. Carlin. Ainda bem.

A sogra do Jacamim em busca da beleza

do Blog da Amazônia

POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE

domingo, 12 de setembro de 2010

O Jacamim andava ciscando no terreiro e, com seu bico irrequieto, beliscava um inseto aqui, uma minhoca ali, uma sementinha acolá. Sua sogra, que assistia a cena, viu que tudo nele era desproporcional e deselegante. Pescoço pelado, curvo e compriiiiido. Cabecinha minúscula em cujo cocuruto emergia ridículo topete de penas eriçadas. Curtas, demasiado curtas eram suas asas. Altas, excessivamente altas suas pernas. Ela olhou aquele bicho desengonçado e, com a sinceridade que as sogras soem ter, disse:

– Meu genro, não me leve a mal não, mas você é feio! Muito, mas muiiiiiiito feio! Feio pra chuchu! Parece até que minha filha casou com um urubu!

Ele, o jacamim-una de penas pretas, decidiu conferir no espelho do lago. A imagem refletida era, efetivamente, a de um urubu corcunda, pernalta, sem garras e com cabeça de piroca. Não gostou. De tristeza, cantou. Mas de sua garganta saía apenas um som estridente – vuh, vuh, vuh – que vibrava como o toque irritante e uniforme de uma corneta. A sogra que tudo observava, arrematou:

– Tudo em você está errado. Nem cantar você sabe. Seu canto parece latido de cachorro ou berro barulhento de uma vuvuzela. Ah, mas isso não vai ficar assim não. Vamos mudar. Espere aqui, meu genro, vou lá no mato procurar a beleza pra você.

Foi.

A beleza das cores

– Beleeeeza, cadê você? – perguntou a sogra, entrando na floresta com um saco. Foi colocando dentro dele tudo de belo que encontrava: as tintas do beija-flor e suas penas com as sete cores iridescentes do arco-íris; o peito, o abdome e o papo-vermelho da pipira; o bico duro e cônico do azulão e sua mandíbula angulosa. Depois, pegou o olhar aceso do rouxinol e a meiguice do pintassilgo. Guardou a sociabilidade, a alegria e o espírito de camaradagem do bem-te-vi, a mansidão do canário-da-horta, a valentia do gavião e até o aparelho digestivo do murucututu lá em cima do telhado.

Mas a velha queria mais. Continuou enchendo o saco. Capturou o voo elegante e baixo de uma andorinha que, sozinha, não fazia verão, mas riscava o ar em curvas caprichosas. Esperou o tico-tico-rei arrufar suas penas brilhantes – tico-tico lá, tico-tico cá – para roubar-lhe o topete vermelho escarlate que parecia incendiar sua cabeça como uma chama. Na terra com palmeiras onde canta o sabiá, ela se apoderou da cauda empinada e das patas cor de avelã da ave que gorjeava e saltitava com desembaraço,

O saco, já quase cheio, recebeu ainda plumas de seda do sanhaço, penas aveludadas do guará recolhidas em um manguezal e vozes de todos os pássaros que o japiim imitava, coletadas num ninho construído ao lado de uma casa de caba. Finalmente, a velha pegou a garganta do uirapuru, com o repertório de seu canto mágico. E quando já ia embora, ensacou os hábitos de higiene do vira-bosta, que toma sempre seu banho matinal – faça frio, faça calor – depois de revolver o esterco à procura de milho.

– Beleeeeeeza, cadê você – perguntou outra vez a velha. Lá de dentro do saco mil vozes de pássaros trinaram. Satisfeita, ela retornou e entregou ao genro toda a beleza ornitológica da mata:

– Aqui está, meu genro, pra você se lavar, se pintar, se enfeitar, se colorir e afinar sua voz.

– Vou me lavar já – ele disse, agradecido.

Foi.

Mas enquanto tomava banho no igarapé, os outros pássaros furtaram-lhe as tintas, as cores, as plumas, os enfeites, o canto e até mesmo sua própria roupagem. A sogra, vendo o genro nuzinho, perguntou:

– Ô Coisa Feia, onde está a beleza que te dei?

– Eles roubaram.

– Além de feio, és leso e abestado – disse a sogra, esfregando sumo de jenipapo na costa dele, que ficou negra. Depois, passou uma mistura de casca de abacaxi com urucu no peito, que ficou roxo. É por isso que o jacamim-una ficou assim.

Os saberes

Essa história que circula entre os índios do rio Negro (AM) é uma versão livre que eu recriei inspirado na narrativa ‘O jacamin e as cores’ (Yacamy i pinima çaua irumo), recolhida no Rio Branco pelo cientista João Barbosa Rodrigues, um ex-professor do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, que viveu mais de dez anos no Amazonas (1872-1874 e 1883-1890). Ele organizou e dirigiu o Museu Botânico de Manaus, andou pelos rios da região, conviveu com diferentes etnias e aprendeu o Nheengatu – a língua geral que lhe permitiu ouvir as histórias e registrar a ciência indígena.

Contei essa e outras histórias na quarta-feira, 8 de setembro, no Auditório Solimões do campus da Universidade Federal do Amazonas, em Manaus, numa mesa-redonda compartilhada com o historiador Antônio Loureiro, que se autodefiniu com simpatia e humor como um ING – indivíduo não governamental. A mesa fazia parte da programação do I Simpósio João Barbosa Rodrigues, coordenado por Antonio Webber e promovido por Frederico Arruda, Pro-Reitor de Extensão e Interiorização da UFAM.

A homenagem da UFAM a Barbosa Rodrigues é mais do que merecida. Ele é o autor do livro Poranduba Amazonense, uma edição bilíngue da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro de 1890, que reúne mitos, contos zoológicos, contos astronômicos e contos botânicos, além de “cantigas com que as mães embalavam seus filhos ou animavam as danças e os trabalhos”, num total de 130 textos.

A grande sacação de Barbosa Rodrigues foi perceber, no século XIX, que numa sociedade sem biblioteca, sem livros, sem escrita, mas com forte tradição oral, as histórias e cantos funcionam como enciclopédias onde estão contidos os saberes necessários para a sobrevivência e a reprodução das culturas. São aulas de botânica, zoologia, astronomia, ciências sociais e ciências humanas, com seus supremos mistérios.

A história aqui apresentada, em suas diferentes versões, constitui um mini-tratado de ornitologia, que dialoga com o Catálogo das Aves da Amazônia, organizado posteriormente pela ornitóloga alemã Emília Snethlage (1868-1929), ex-diretora do Museu Goeldi, no Pará. Essas histórias contêm o sistema de classificação das diferentes espécies de aves, pássaros e outros animais, suas características físicas e comportamentais, hábitos, costumes, lugares onde vivem, como se alimentam e se reproduzem.

Parte desse conhecimento, que foi satanizado e discriminado por não se enquadrar dentro dos cânones da ciência e da religião dominantes, se perderia com a morte dos velhos narradores se alguns tupinólogos não os tivessem registrado. Barbosa Rodrigues, que publicou inúmeras obras de botânica, uma delas sobre palmeiras, outra sobre orquídeas, ficou encantado com a capacidade de observação e o espírito científico dos índios.

Segundo ele, os índios “seguiam e seguem um método sintético na classificação das plantas. Designam as espécies por nomes tirados dos caracteres das folhas, flores, frutos ou de propriedades como o cheiro, o sabor, a dureza, a duração, a cor, o emprego, etc.etc. Nenhuma característica essencial lhes escapa. São tão exatas as suas observações, que se encontram gêneros e subgêneros em uma só família, como se fossem agrupados por um verdadeiro botanista”.

O I Simpósio Barbosa Rodrigues fez parte de uma programação maior do 61º Congresso Nacional de Botânica, organizado pela Sociedade Brasileira de Botânica e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, com o apoio da UFAM e de outras instituições. O Congresso reuniu em Manaus, de 6 a 10 de setembro, mais de dois mil pesquisadores do Brasil e do exterior. A mídia, lamentavelmente, não deu a devida importância a um evento que discutiu, entre outros temas, a Amazônia. De qualquer forma, lá compareceu a sogra do Jacamim, que saiu em busca das cores da beleza e acabou encontrando essa outra forma do belo que é o conhecimento.

P. S.: Alguns leitores estão reclamando porque as eleições de outubro no Amazonas não estão sendo comentadas aqui nesse espaço. Sinceramente, entre Omar Aziz e o Cabo Pereira, eu fico com a sogra do Jacamim.

O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti